"Assim como muitas pessoas eu tive uma infância triste, não por ser órfã ou por ter uma doença terminal e sim porque eu era solitária. Meus pais trabalhavam muito e me deixavam grande parte do dia sozinha, algo comum com as crianças hoje em dia, e com sempre a mesma justificativa 'É para o seu futuro, minha querida', eu não os via saindo de manhã e nem os via voltando a noite e nas raras vezes que algum deles estava em casa, ou era dormindo, ou era no celular com algum sócio, me lembro de ficar escondida atrás da enorme porta do quarto deles esperando ouvi-los dizer algo sobre mim, eu me sentia como se estivesse abandonada.
Nossa casa era consideravelmente grande, e bastante afastada da civilização, ela era muito 'chique' pôr o preço na qual tinha sido comprada, me lembro de uma vez ter perguntado a uma empregada – a minha única companhia dentro da casa – o porquê do preço, ela pareceu refletir a melhor pergunta e por fim disse 'É por que é muito longe dos outros' com certeza era uma mentira, mas, deixei para lá. Meus dias eram muito monótonos, se resumia em ir à escola, chegar em casa e passar o resto do dia lendo, eu não tinha amigos na escola e perto da casa não havia vizinhos, o que deixava a minha solidão ainda pior, as vezes eu ia brincar no pequeno bosque atrás da casa e algumas outras explorava o sótão proibido, era um lugar escuro, sem lâmpada ou janelas, o cheiro de mofo impregnava o ar, e o silêncio dali era quase ensurdecedor, era um lugar estranho e todas as vezes que entrava ali sentia como se alguém estivesse ali.
E no meu aniversário de doze anos, meus pais lembraram da minha existência e me deram um companheiro, um pequeno gatinho preto com grandes olhos azuis, seu nome era Moon. Moon era meu único e precioso amigo, meu companheiro e durante nosso tempo juntos nos divertíamos e brincávamos, corríamos, pulávamos era incrível. Em uma noite tão nublada em que a lua teimava em se esconder eu e Moon estávamos no meu quarto nos preparando pra dormir, até ouvir um som no andar de baixo, Moon e eu descemos as escadas calmamente e encaramos a porta de entrada, 'ta ta ta', alguém bateu na porta, três batidas – rápidas e suaves – eu fiquei em frente a porta e olhei pela minúscula janela de vidro para ver lá fora, ninguém, eu toquei a maçaneta e a girei abrindo uma pequena fresta na porta, olhando logo em seguida, e de repente uma garota apareceu na minha frente, eu me assustei ao ponto de cair no chão, ela entrou pela porta escancarada e ficou na minha frente, era uma menina baixinha e loira com olhos castanhos e a pele clara, mas, suja provavelmente de terra, usava um vestido branco na altura dos joelhos, assim como seu rosto, estava sujo de terra, ela sorria, um sorriso mínimo e um tanto estranho. E eu, ainda sentada no chão, a encava, numa mistura de medo e surpresa, ela estendeu a mão e deu um sorriso aberto, eu timidamente a segurei, uma mão gelada e áspera, me levantei com sua ajuda e tentei a encarar, eu não era boa conversando, talvez pelo fato de não ter ninguém com quem treinar, ela ainda segurava minha mão, e eu tentei puxá-la mas ela começou a apertá-la eu a encarei e ela sorria o mesmo sorrisinho de antes,
- Olá – Ela falou, uma voz que tintilava com certa melodia, eu a encarava e baixei novamente o olhar
- Olá – Respondi timidamente e em voz baixa – Precisa de algo? – Uma pergunta estranha para um estranho que estava vagando no meio do nada e que agora apertava sua mão ao ponto de doer – Pode soltar minha mão? – Ela baixou o olhar e encarou nossas mãos entrelaçadas e depois de alguns segundos a soltou
- Eu costumava viver nessa casa e estou aqui para vê-la novamente – Ela disse isso e entrou indo rumo a escada, eu não sabia como reagir, ela parecia inofensiva e dizia que já tinha morado aqui e mesmo que fosse um pouco estranha acho que não fazia mal ela ver a casa, ela subitamente veio na minha direção e se ajoelhou encarando Moon
- Ele é seu? – Falou tentando acariciá-lo, mas ele desviou e foi pra longe dela, ela ficou em pé novamente e me encarou – Acho que ele não gosta muito de mim – Aquilo era estranho, Moon podia não ter muito contato com os outros mas ele não era selvagem
- Isso é estranho, ele não é assim normalmente – Falei a ela, olhando para onde ele tinha corrido
- Os animais não gostam muito de mim – Explicou, sorrindo novamente, o mesmo sorriso estranho, ela logo se recuperou e foi em direção a escada – Quero ver o sótão –
- Mas não a nada lá, é só um velho quarto cheio de mofo –
- É meu lugar favorito – Afirmou, mas, com um certo peso na voz, eu concordei e fomos em direção a escada, a subimos e ela sempre a minha frente, a escada não era tão alta era feita de uma madeira escura, quase negra, o que dava um toque "sombrio" ao cômodo. Assim que chegamos ao segundo andar ela parou de andar e se virou para mim
- Olhe, ali está seu gato! – Segui o olhar para onde sua mão estava apontando e vi moon um pouco mais adiante de nós, sentado encarando a parede, fui em sua direção e o peguei no colo
- O que foi Moon? – Perguntei a ele, era algo normal pra mim conversar com ele, mesmo que não me respondesse obviamente, ele me encarou com aqueles seus grandes olhos azuis e por um momento pareceu que ele queria me dizer algo
- Vamos! – Ela falou tirando a minha concentração do gato para ele, afirmei com a cabeça e ela foi em frente, eu estava logo atrás, segurando moon, eu odiava aquele cômodo e a única maneira de suportá-lo era com Moon ao meu lado.
Ficamos mais alguns minutos caminhado e tivemos que subir outra escada, mas, bem menor que a primeira, nesses instantes ficamos totalmente caladas e eu pensei em ouvir a garota sussurrar algo, mas ignorei. Quando finalmente chegamos ao lugar, havia outra escada, simples e de madeira, ela subiu os poucos degraus e abriu a porta, ficando ao seu lado
- Entra! – Falou, eu estava nervosa, costuma explorar frequentemente o sótão quando era mais nova, mas, já não fazia mais aquilo por medo, eu hesitante fui subindo a escada, apertei mais Moon e entrei no cômodo, estava exatamente como sempre foi, sujo e mofado, não entendia como alguém conseguia gostar dali, ela logo entrou e ficou perto da porta, ainda segurando a maçaneta,
- Não vai entrar? – Perguntei, ela que até então estava com a cabeça baixa, lentamente começou a levantá-la e quando me encarou começou a rir, eu comecei a caminhar para trás abraçando moon o mais forte possível
- O que foi? – Perguntei assustada, aquilo não era normal, ela então começou a fechar a porta, e o cômodo sem nenhuma iluminação foi ficando cada vez mais escuro, eu então juntei coragem e corri em sua direção antes que a porta fosse totalmente fechada, Moon pulou de meus braços e sumiu naquela escuridão, eu fui em direção a maçaneta para tentar impedi-la de fechar totalmente, e num movimento rápido ela pulou em cima de mim e colocou as duas mãos ao redor do meu pescoço, ela estava tentando me matar e eu tentava a empurrar com todas as minhas forças, a sensação de angústia e desespero começou a tomar conta de mim e eu comecei a estapeá-la e quase sem ar com minha visão turva e num momento desesperado eu consegui a empurrá-la de cima de mim e me arrastei em direção a porta, me levantei e consegui trancar a porta e pude ouvir os tapas desesperados do outro lado da porta, uma mistura de tapas, gritos e palavras sem qualquer nexo.
Depois daquilo corri para a sala e liguei para os meus pais, eles atenderam na minha terceira tentativa e pareciam furiosos, expliquei tudo para eles –a garota que tinha aparecido, o que tinha acontecido e pela primeira vez em anos ouvi desespero em suas vozes, 'Nós já chegamos querida', eles demoraram algumas horas para chegar, por causa da distância da casa, e nesse meio tempo eu fiquei procurando Moon. Assim que chegaram junto com a polícia, foram em direção ao sótão, minha mãe ficou comigo no andar de baixo me confortando e depois de alguns minutos os policiais desceram junto com meu pai, 'Não há nada lá', eles disseram, e mesmo comigo insistindo e afirmando que sim eles foram embora ouvindo as desculpas dos meus pais pelo transtorno, no finzinho daquela noite eu ouvi um bronca dos meus pais dizendo o quanto aquilo era infantil, e fui mandada para o quarto com a promessa de que a bronca era só o começo, 'Eu não sonhei aquilo tudo, é impossível' pensava enquanto ia para o quarto, e decidi ir ver o sótão para checar se a garota ainda estava lá, peguei uma lanterna e fui para lá, cheguei até a porta e respirei fundo, abri cuidadosamente ainda com medo de algo sair dali de dentro, e quanto me certifiquei que não havia nada liguei a lanterna e apontei para dentro, a luz da lanterna não era tão forte, mas pude ver no canto direito um líquido vermelho, tão forte que até mesmo a luz fraca da lanterna podia ilumina-lo, em passos lentos fui me aproximando e assim que cheguei perto a lanterna falhou, fiquei batendo nela até que a luz voltasse e assim que funcionou novamente estava iluminando diretamente o local com sangue. Aquilo era o fim, caí no chão de joelhos e minha roupa ficou coberta daquele líquido, que agora sabia o que era, era o sangue do Moon, meu estômago revirou e sentia que podia vomitar, os pedaços do meu gato estavam espalhados por todo o chão daquele canto, e sua cabeça estava tão próxima que ainda podia ver os seus enormes olhos agora sem vida, me levantei e corri daquele lugar e enquanto saia daquele inferno juro que pude ouvir a risada aterrorizante daquele demônio."